Crónica de Alexandre Honrado
A propósito de Camões
Sem Camões, o poeta português, o mundo seria mais infeliz e não compreenderia a dimensão global que a palavra, a mensagem, o verbo, podem ter ao procurar explicar e interpretar com euforia a verdadeira sensibilidade do mundo. Esta frase ajusta-se a outros poetas, admita-se, mas Luís Vaz de Camões, pelo critério e pelo mistério, pelo afeto e pela irreverência, pela aventura e pelas adversidades, sobreviveu ao que foi – um Homem do Renascimento e do atrevimento — ocupando um pedestal da imortalidade que, sobretudo desde o século XIX, tem sido iluminado por focos progressivamente mais potentes. Talvez por isso, Camões suba um degrau mais alto até ao patamar dos eleitos, olhando de cima por exemplo para outro português e poeta que reinventou antes dele o século XVI, Sá de Miranda, dando à poesia para lá da alma um corpo e deste uma bifurcação estonteante, a mente, o espírito, para lá do corpo, a matéria como ponto de partida do espírito rumando ao infinito das sensações e da sensibilidade. “A consciência de si inclui o sentimento de si que existe antes dela”, diria o filósofo (Gil, 2023).
Camões, cidadão do mundo e da mobilidade, um migrante, que atravessou continentes criando lenda — a ponto de não sabermos se o que viveu é a sua poesia ou a poesia é a forma como partilha o que viveu –, um porta-voz do divino que exaltou os deuses e, ao mesmo tempo, sem paradoxos, as exigências de uma Igreja (a católica romana) às voltas com um dos seus momentos históricos mais desafiadores (o nascimento do Protestantismo, a Reforma, a Contrarreforma, as exigências de uma reinvenção). Ao mesmo tempo, um pecador, incapaz de respeitar ditames de homens ou de deuses.
A dimensão poética do Homem aproxima-o do divino. Não porque Deus, qualquer deus – se manifeste mais na Poesia do que na Prosa ou porque seja literária a Sua essência, mas porque a Poesia, como fulcral manifestação e confissão do homem interior, parece aproximar-se mais da Palavra enquanto imitação da mesma: o homem procura o divino que há em si pelo percurso do belo e do essencial, divinizando-se, isto é, produzindo ideais de transcendência, aproximando-se de algo muito acima dos seus desafios quotidianos. Com surpresa, essa exaltação pela palavra é revelada em crentes e não crentes: aos poetas parece corresponder, nas imagens que criam, a frase de S. João “E eis que faço novas todas as coisas”. Porque, nessa aceção, a palavra é relação, procura e o que resulta dessa procura, para exaltação de quem a revela.
Alexandre Honrado
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